A diretora Susanna Lira e as atrizes Malu Mader, Aline Dias, Gabrielle Joie e Lorena Comparato contam mais como foi abordar assunto tão delicado quanto o feminicídio
A nova série do Não Foi Minha Culpa: Brasil retrata a violência contra a mulher sob diversas formas: do abuso psicológico de um namorado narcisista até o assassinato perpetrado contra uma mãe pelo próprio filho.
Em dez episódios, cada um focado em mulheres diferentes, o seriado aborda diferentes crimes motivados pelo machismo no Brasil. Todos são ligados pelo mais brasileiro dos eventos, o carnaval, festa tão democrática quanto a misoginia.
Para tratar de assuntos tão delicados, o elenco e produção da série, encabeçados pela diretora Susanna Lira, tiveram uma preparação cuidadosa durante toda a filmagem, que contou com acompanhamento psicológico e um set majoritariamente feminino.
No entanto, esse caminho, apesar de acolhedor, também trouxe reflexões e catarses para as atrizes, que compartilharam um pouco de sua experiência durante a filmagem de Não Foi Minha Culpa: Brasil.
Bastidores de Não Foi Minha Culpa: Brasil: Passando a vida a limpo
Malu Mader, que interpreta uma promotora que sai em defesa dessas mulheres em dois episódios da série, afirmou que o processo de gravação a fez passar a limpo toda sua vida.
“Lembrei de inúmeras situações que passaram batidas na hora mas percebi que tinham abusos por trás”, explica. “Essa é a importância da série, criar insights nas mulheres que assistem para elas perceberem antes de ser tarde demais”.
Lorena Comparato, atriz conhecida por seu papel em Impuros, revelou sentir o mesmo. “É difícil entender quando essas coisas acontecem com você, depois que eu terminei a produção tive um momento de rever coisas há muito tempo enterradas”, divide ela.
“Tem essa parte que ninguém fala muito que é o depois, quando você já viveu essa personagem e agora fica sozinha com essas memórias. A Susanna e o pessoal não nos deixaram só porque já tínhamos terminado de gravar e isso é muito importante”, complementa ela.

Bastidores de Não Foi Minha Culpa: Brasil: Hiperssexualização das mulheres
Gabrielle Joie interpreta Joana, uma garota trans que tem sua vida encerrada por dois rapazes durante a folia de carnaval. Para ela, tratar do assunto é relembrar o fato do Brasil ser o país que mais mata pessoas transexuais no mundo, ao mesmo tempo que é a nação que mais consome pornografia com indivíduos trans.
“Esse paradoxo do desejo e do ódio é algo que me intriga. Como nosso corpo é hiperssexualizado e ao mesmo tempo provoca ódio, um ódio que leva ao assassinato”, conta ela.
Aline Dias, que faz o papel de Ingrid, uma jovem ambiciosa que tenta ser reconhecida pelo seu talento no ambiente profissional, também entende esse problema sendo uma mulher negra.
“A gente foi vista durante muitos anos como só um objeto, uma mulher feita só pra transar mas não pra assumir, então eu cresci sendo rejeitada por muitos meninos que eu gostei e depois que eu fui perceber isso”, conta Aline.
Bastidores de Não Foi Minha Culpa: Brasil: A cena mais difícil
Dias interpreta uma das cenas mais fortes do seriado, quando Ingrid é violentada em um estupro coletivo. “Essa foi uma cena em que todo o set parou. Foi algo que tivemos que pensar muito sobre o porquê de estarmos fazendo isso”, explica Susanna Lira.
“Nos reunimos todas e começamos a questionar a cena, algo que não seria possível num set masculino. Chegamos à conclusão de que queríamos ressignificar aquilo, queríamos enfrentar a situação, que isso servisse de catarse e, depois, de cura”, conta a diretora.
Aline conta que esse apoio foi essencial na hora de gravar a cena. “Naquele momento minha personagem tinha que se permitir não ser forte, ela tinha que viver a dor daquele estupro coletivo”, explica.
No episódio, Ingrid é manipulada pelos colegas de trabalho, sendo um deles seu próprio chefe, para a terrível situação. “Mesmo não tendo sofrido isso, passar por aquilo acionou vários gatilhos que me deixaram derrubada depois, porque pensei em todas as vezes em que eu, Aline, fui usada no ambiente profissional”, afirma.
Bastidores de Não Foi Minha Culpa: Brasil: A responsabilidade da representatividade
Tanto Aline quanto Gabrielle falaram sobre representar grupos tão marginalizados como as mulheres negras e as mulheres trans. Para elas, apesar da preparação, é impossível que só elas consigam representar todas na tela.
“Eu tive a responsabilidade de ir para além de ser vítima ali, porque tinha que mostrar também a nossa força como mulher trans”, conta Gabrielle. “Eu não sofri violência física igual a Joana, mas pensar em todas as meninas trans que já morreram numa situação parecida foi muito emocionante”.
“Mas não tem como eu, Gabrielle, representar todas elas, que possuem tantas vivências e experiências diferentes. Eu estudei muito, fiz o que podia fazer para honrá-las”, completa.
Aline explica que é preciso ter mais papéis como esses para lidar com essa sobrecarga de responsabilidade. “É difícil representar todas as mulheres negras, porque são muitas, cada uma é diferente, mas o pouco que a gente representa, elas se identificam”, conta ela.
Bastidores de Não Foi Minha Culpa: Brasil: “Precisamos parar de ter medo de histórias fortes”
Para Susanna e todas as atrizes envolvidas, no entanto, o importante da série é que ela sirva de aprendizado para mulheres e homens sobre a questão da violência machista perpetrada no Brasil de hoje.
“A arte tem um poder muito radical porque dá a chance das pessoas viverem aquilo sem realmente passarem por aquilo. E é isso que essa série faz, duvido você não sentir com as entranhas tudo o que acontece com cada menina em cada episódio”, afirma Malu Mader.
“Ficamos um ano inteiro pensando sobre esse trabalho, e não queremos que ele seja um gatilho para uma tristeza paralisante e sim para a reflexão. Precisamos parar de ter medo de histórias fortes e encarar de frente as contradições da nossa sociedade. É isso que Não Foi Minha Culpa: Brasil faz.”, conclui Susanna.